No fim de 2020, publiquei este texto na Revista Milímetros, publicação da ABD Capixaba. Para acessar o a publicação completa clique aqui.
Tentei com ele pensar, no meio do acontecimento, o sentido coletivo do cinema, a questão das políticas públicas, a da institucionalidade em geral. Escolhi a forma de um diálogo entre pessoas que não sabemos quem são.
Aqui vai:
— Que cinema você acha que seria possível depois da pandemia, hein? Você acha que vai ser como?
– No Brasil?
– É.
— Cinema é uma coisa ampla, né?
— Sim, sim. Mas você acha que pode algo melhorar no campo do cinema?
— Então, em termos de incentivo público, a coisa tava ruim antes e tá caminhando pra pior, né? Os estados que não têm mecanismos estaduais ou municipais de estímulo estão ferrados, sendo que muitos poucos têm.
— Sim. Na verdade, no nível das políticas públicas, seria importante implantar modelos de estímulos para pequenas produções, levando em conta a descentralização territorial, tanto em nível nacional, estadual e municipal e até dentro da própria cidade.
— De certa forma, uma possível estratégia seria tentar oxigenar outros níveis da cadeia que não só a produção. E não custa tão caro.
— Dê exemplos.
— Política de cineclubes, por exemplo. O fortalecimento de uma cultura audiovisual não depende unicamente da produção de novos filmes. A cubana Coco Fusco1 escreveu outro dia: “Precisamos de novas instituições e não de nova arte” Acredito nisso, como estabelecimento de prioridades. É claro que o ideal é sempre ter os dois. Mas é mais fácil ter nova arte com novas instituições do que o inverso.
— Entendo. Se você coloca cinema brasileiro como política pública nas escolas, exibindo, convidando os profissionais na escola, você além de fomentar uma cultura, um hábito, você também estimula o cinema amador.
— Cinema amador?
— É. Não sei bem o nome disso, oficialmente. Mas eu falo do cinema que os alunos de escola podem fazer no celular, por exemplo. No Brasil, este “cinema fora da sala do cinema” nunca foi tão forte. Acho que ações voltadas para formação dos jovens podem ter isso como foco. E nesse sentido, pensar na fertilização de um cinema radicalmente local. Tentando sonhar alto, penso num cinema de bairro. Um centro de cinema por bairro, com cineclube regular, pequenos filmes feitos no local, por gente do local, ações de pesquisa sobre a história dos locais, registro de outras manifestações.
— O audiovisual, uma formação audiovisual é exigência ética hoje, né? Todo mundo, muito cedo, vai se ver pensando em enquadramento, corte, luz, cena. Isso faz parte da cidadania hoje. Só que estamos deixando as pessoas se educarem sozinhas. Isto é, estamos deixando as corporações do Vale do Silício fazerem isso – enquanto na casa dos donos dessas megaempresas, nem celular a doméstica pode usar. Enfim, o que quero dizer é que o Estado pode estimular um audiovisual comunitário, em todos os níveis, e nesse também. A internet como janela não pode mais ser ignorada. Muitos projetos prontos hoje estão travados porque legalmente não podem seguir só o circuito on-line.
— Sim. Acho que uma coisa que a vida pandémica trouxe foi essa possibilidade do on-line como forma de aumentar o alcance de algumas coisas. Para produção de conhecimento, história, pra debates, palestras, me parece muito bom. Todo evento, mesmo quando o presencial voltar de algum jeito, não pode não ter algo voltado para esse ambiente on-line. Tem sido produzido um imenso volume de boas discussões e bons conteúdos de cinema durante a pandemia.
— Seria isso então “novas instituições”?
— Não sei, mas há aí algo que podemos aprender, essa possibilidade de criar redes, principalmente para quem não ocupa posições majoritárias. Mas, por exemplo, poderia haver uma aproximação entre eventos e escolas. Se alunos não estão podendo ter o currículo normal, me parece que, por exemplo, num festival on-line, você pode pensar atividades pedagógicas. Essa relação entre arte e educação é chave tanto para um lado quanto para o outro.
— Verdade. Vejo a meninada fazendo imitações em video, no celular, remontagens. Fiquei pensando numa política pública de estímulo a fazer isso com filmes brasileiros. Você imagina? Vários meninos refilmando e remontando A velha a fiar do Humberto Mauro?
— Tudo a ver!
— Memetizar o Humberto Mauro.
— Isso. Mas, enfim, acho que a pandemia é rito de passagem de entrada geral no século XXI, com a internet concentrada nas redes sociais, enfim… Acho que é preciso fazer dessas práticas ferramentas de desenvolvimento de cidadania. E isso passará por criar ferramentas sociais de reflexão e apropriação desses meios, desde criança. Porque se não entrarmos, quem entram são as corporações americanas de streaming. E pergunta a elas qual o compromisso que elas têm com o cinema brasileiro e com a cidadania.
— Zero, né?
— Elas vão com a maré, defendendo o delas. Não tem compromisso com a memória, por exemplo. Nove em dez filmes que veiculam são deste ano ou do passado. Eles querem novos filmes, velhas instituições. Mesmo quando incorporam pautas políticas, é só por conveniência, por maior lucro.
— A pandemia foi um acelerador de desigualdades. Portanto, acho que caberia uma conscientização maior sobre o lado mais fraco, economicamente.
— Esse cinema, da internet, do celular, ele não vai parar mais, virou o cotidiano das pessoas ver e fazer vídeos. Então, acho que talvez haja maneiras de estreitar uma coisa com a outra. A produção e a reflexão mais formal e institucional do cinema, com essas imagens que a galera consome, que a molecada tá sendo educada por elas.
E isso tem um lado ruim. Tem muita criança sendo educada por autoplay do YouTube, pra parar de encher o saco dos pais.
— Mas imagina se você tem uma plataforma bem-feita, on-line, com filmes brasileiros, em alta, com informações, legendas, debates. Imagina se larga uma criança num autoplay em um ambiente desses? Imagina, junto a isso, bibliotecas com enorme acervo de livros e também com salas de vídeo e um centro de audiovisual comunitário, com equipamento de pós-produção que as pessoas podem pleitear finalização, que você pode relacionar com estúdios de gravação musical também, reaproveitar pro seu vizinho músico fazer uma trilha pro seu filme, entende?
— Novas instituições mesmo. Radical.
— Cara, porque o que faz cinema é infraestrutura. Em vários sentidos. Infra técnica, claro, isto é: ter equipamentos para realizar a finalizar. Mas há também outros tipos de infra. Isso diferencia muito as pessoas brancas das não brancas no audiovisual, por exemplo, e também as classes sociais. Muitas pessoas brancas, herdeiras, têm, além da infra técnica, infraestrutura económica. Têm acesso e tempo para estudar. Como um estudante negro pobre pode constituir repertório pra se desenvolver? Mesmo que ganhe um edital de produção. Os brancos conseguem errar dez vezes, ter quem fale isso pra eles, indique o caminho, e aí podem se desenvolver. Os negros, os indígenas, é um tiro só. Acertou, é gênio. Errou, desiste.
— Acho que não haverá um pós-pandemia, porque a doença vai ficar aí, como uma gripe entre outras. Mas enfim, se a pandemia aumentou o problema do distanciamento (que já é um fenômeno anterior, nas grandes cidades, todo mundo solitário, uma diminuição progressiva da vida comunitária), que ele possa ser, se necessário, mais espacial que social. Esse novo cenário mostra que podemos ser sociais mesmo em espaços diferentes. Isso é de fato interessante.
— Verdade. Eu adorei acompanhar alguns festivais que eu sempre quis ir, vendo de casa, aqui do Espírito Santo mesmo.
— Também curto muito. Coisa demais até, né?
— Fico pensando se nessa biblioteca multimídia comunitária não tem um acervo de imagens do bairro, imagens
locais. Você estimula pessoas a depositarem imagens do bairro lá. Seja filme, seja registro amador. E aí, você cria uma acervo para consulta e uso. A galera pira quando vê seu lugar em imagem, em outro tempo. Você imagina a criançada pegando imagem antiga, do próprio bairro, misturando com as novas, fazendo pequenos curtas, que a própria biblioteca poderia exibir. Enfim…
— Bicho, vai ser uma loucura se pudermos ver filmes juntos a muita gente de novo. Por um lado, agora que estranhamos aglomeração, vamos sentir ainda mais a vibração coletiva, né?
— Vai ser mais raro, mas talvez nós demos mais a valor a isso, já que será menos normal.
— Mas filme brasileiro a sala sempre tá vazia, não é?
— Então, por isso falei lá no começo da coisa de fomentar uma cultura, desde a escola. Nos EUA, cinema americano é cinema nacional. Na índia… É tudo hábito. Precisamos mais de hábito, de cultura, de vivermos o cinema, do que de uma enxurrada de novos filmes, jogados aos tubarões.
— Entendi. Pensei na situação aqui no Espírito Santo. Faria muito sentido ter muitas ações de restauro de cinema capixaba – que ainda hoje é um segredo mesmo para quem é daqui – e de disponibilização e mediação também. Seria legal se o Estado produzisse 15 longas por ano, mas, sem acompanhar políticas de formação e hábito, seria uma distorção. É igualmente importante fomentar um público para o cinema. Mesmo nos Estados Unidos, as pessoas não nascem com uma genética para gostar de filme americano. Elas aprendem. Penso que poderíamos aprender e curtir.
— E no caso desse cinema de internet, dos virais, dos amadores, as pessoas já curtem. Então faria mesmo sentido estimular isso, pegar por aí. Imagina fazer um curso de história das imagens, só pegando os materiais da Leona Vingativa,por exemplo?
— Pode crê.
— Pensar na história do melodrama, da performance, do cinema queer… Daria para puxar por vários lados, sem ficar impondo tanto um repertório “externo” pegando coisas que a galera já se amarra e dizendo que ali há mais relações possíveis, que há mais o que pensar, explorar os parentescos.
— Um cinema social, mas não só de temas sociais, mas de relações sociais, né? Que gere e seja gerado por interações sociais, das mais variadas.
— Inclusive a distância, né?— Sim. Acho que isso é algo que podemos levar para o futuro, do ambiente pandémico. Essa abertura para outros territórios. É uma interessante possibilidade de interações. Que pode se dar em níveis variados, profissionais ou amador.
— E penso que isso é estimulado por textos, videoensaio, videoaulas, né?
— Sim. Quando falo interações, inclui isso demais. Há muito o que refletir sobre o cinema que já se fez. O cinema brasileiro é um segredo para o Brasil. Uma missão possível seria apresentar o cinema brasileiro para o Brasil. Não só o de agora, mas também o de sempre, numa plataforma on-line, por exemplo, onde tivesse os filmes produzidos com editais públicos. Isso sim seria um cinema preocupado com o público, que pensa o público, como os donos da grana gostam de dizer, para abocanhar a grana inteira dos mecanismos de fomento. É necessário trabalhar em direção a um cinema público. Em suas variadas faces.
— Em Belo Horizonte, uma vez fui numa sala de cinema pública. Sala Humberto Mauro. É muito boa, tecnicamente perfeita, boa programação.
— Poxa, imagina uma dessas no Centro de Vitória? Que luxo! Projetando película, vídeo, abrigando festivais, exibindo acervo local, sem pressão das distribuidoras majors… Imagina que sonho!
— Junto com uma escola pública de audiovisual, como a que tem em Fortaleza, da Vila das Artes. Imagina?
— É isso. Um cinema possível e desejável é um cinema do público, e não do privado. De interesse público, de acesso público, de reflexão pública. Não é tão caro, mas não sei se, hoje, são ideias que interessam mesmo ao próprio setor. Estamos viciados em uma mesma forma de imaginar o nosso campo, organizado quase todo em direção à produção de longas-metragens para cinema. É claro que eles são importantes. Mas só produzir longas, para depois jogá-los ao mar, é algo que talvez possamos fazer melhor. Porque tão importante como produzir é criar e fomentar espaços para recebê-los.
— Cinema é mais do que só filmes, né?
— Sim, cinema é, em todos os sentidos, coletividade.
— O desafio de ontem e o de amanhã é esse. Atuar no sentido de radicalizar esse caráter coletivo e público e a atividade, voltada para a presença dela como um todo na vida das pessoas, e com isso, obviamente, gerando aquecimento económico para o setor, mas um aquecimento que seja também cultural, social, comunitário. Não dá pra achar que cinema é só produzir novos produtos,né?
— Exatamente
— Assim seja.
Notas de leitura:
Texto da Coco Fusco
https://hyperallergic.com/596664/ford-foundation-creative-futures-coco-fusco/
Babás do Vale do Silício não podem usar telas no trabalho https://brasil.elpais.com/brasil/2019/03/20/actualidad/1553105010_527764.html
Sobre a Velha a Fiar
A velha a fiar é um curta-metragem brasileiro de 1964 dirigido por Humberto Mauro, com a música popular homónima cantada pelo Trio Irakitan. Uma joia do cinema brasileiro, esse curta-metragem chegou a ser considerado pelos cr íticos como um dos primeiros videoclipes do mundo. Humberto Mauro é sem dúvida o nome mais destacado do cinema brasileiro na primeira década do século XX. Parte da sua notoriedade posterior provém também do papel de destaque que os historiadores vinculados ao Cinema Novo lhe deram, com um antecessor de um cinema genuinamente brasileiro em todas as suas dimensões.
Leona Vingativa
Este é o canal oficial de Leona Vingativa, onde está a maior parte de seus vídeos https://www.youtube.com/user/LeonaOficial