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Proteja sua recusa (sobre o curta Nada, de Gabriel Martins)

Em 2019, contribuí com a publicação Curta brasileiro: 100 filmes essenciais, escrevendo sobre o curta Nada (Gabriel Martins, 2017, MG). Quem estiver interessado no livro compre aqui e tenha mais informações sobre o livro no site da Abraccine, que é a organização responsável por esta publicação e outras do tipo.

Aproveitando o lançamento de Marte Um, do mesmo diretor, nos cinemas, compartilho aqui meu texto sobre Nada (que tem alguns atores e técnicos em comuns com o novo longa do Gabriel):

Proteja sua recusa

por Juliano Gomes

Nada trata do amadurecimento. Em destaque, está Bia (Clara Lima), em vias de terminar o colégio e fazer dezoito anos. Mas seu contexto também está em transição. Uma família negra de classe média no Brasil de hoje, que encontra na jovem a possibilidade histórica de chegar à universidade, tem que lidar justamente com um revés ligado á autonomia que as políticas públicas lhes possibilitaram conquistar. Bia pode chegar à faculdade mas não quer: ela não quer fazer nada. Daí se estabelece o conflito  moral sobre o qual filme se apóia, que questiona o automatismo da ligação entre sistema educacional e desenvolvimento pessoal. Já que se conquista o direito de acessar, conquista-se também o direito de negar.

O filme se irmana de sua protagonista. Acompanha o trajeto de Bia, presente em todas as cenas, restando a nós um julgamento moral das opções dela. Clara Lima está no centro da história. Quando ela está de fone, ouvimos junto. As canções têm efeito narrativo. Na abertura, num travelling sobre o espaço urbano belorizontino, o reggae de Shalon Israel diz “eu não vim pra me curvar /esse bicho tá desconsiderando o negro / negro é cabeça de gelo”. Bia é aquela que recusa. Recusa o trajeto social automatizado “escola-faculdade-trabalho”, recusa a etiqueta de tratamento com a coordenadora da escola, recusa a pressão de seus pais para que faça o Enem, recusa performar feminilidade (sem que isso se torne ênfase). Numa narrativa que faz bambear a cantilena da idéia de “inclusão” como benfeitoria, a personagem vivida pela MC Clara Lima afirma a liberdade de negar.

A energia dos filmes de Gabriel e da produtora Filmes de Plástico (que criou com André Novais Oliveira, Maurílio Martins e Thiago Macêdo Correia, em 2009) tem uma relação estreita com a oralidade. A fala – num movimento oposto a uma tendência “mutista” que podemos observar em muitos filmes brasileiros nos festivais nos anos 2000 – é veículo de expressão de subjetividade, que se constitui na interação com o outro, e  também matéria de uma de inventiva afirmação territorial. Uma certa fala mineira das ruas é um matiz importante no coração dos outros filmes de Gabriel e de seus companheiros, em especial em Contagem (2010), Fantasmas (2011) e O quinze (2014). A ideia de regionalismo não busca uma exotização mas justamente a dissolução da divisão centro-periferia. Centro é tudo que fala. Entre os coletivos de cinema que marcaram nossas telas neste século, provavelmente este quarteto mineiro foi quem melhor conseguiu conciliar autonomia criativa com expansão da visibilidade de sua produção. Gabriel co-dirige em 2019, o longa No coração do mundo, enquanto seu longa solo Marte um, está em fase de montagem. Sua filmografia é uma das mais exemplares para se narrar as transições estéticas e políticas que o cinema de invenção brasileiro passou neste século.

Neste sentido, Nada é uma fábula sobre autonomia conquistada e posta à prova. A artista Clara Lima empresta à personagem uma energia ética ao incorporar elementos pessoais (Bia faz rimas em seu quarto numa das cenas mas importantes, e seu figurino e performance de gênero parecem bem próximas da MC) que o filme desdobra com foco e eficiência. O tom entre a marra e o descaso, forjado das batalhas de rima, cabe com justeza nessa protagonista cujo mundo interior sentimos vibrar pelas nuances de seu rosto, mas que de fato não podemos acessar. Qual futuro dessa geração, qual será o fruto dessa nova emancipação? A cena do aniversário elucida o choque geracional e histórico. Seus pais improvisam um parabéns em forma de rap para ela. A mãe (Rejane Faria), alegre, diz: “vamos fazer guerra”, referindo as batalhas de MCs – lugar onde Clara Lima constituiu enorme fama nos últimos anos.

Guerra aniquila o outro, e a batalha em questão é a capacidade de duelar, tentar se impor, sem destruir concretamente o oponente. A arma é  palavra e  flow  (o acento particular, as velocidades, divisões e timbres). O rap processa a violência e devolve insubmissão. Bia é exemplo dessa formação, que as escolas insistem em ignorar, mas que instruem a subjetividade dos jovens brasileiros desde pelo menos o estouro dos Racionais Mcs nos anos 90. Entre os muitos feitos de Nada, está o registro do hip hop como fundamento ético e político da juventude brasileira, como dado cultural de base do Brasil das últimas décadas. É a essa batalha entre tempos que o filme dá corpo. Ao aproveitar materiais do passado via sampler, formando a base sobre a qual as rimas passeiam, este gênero se apresenta como um novo paradigma de temporalidade histórica. O passado é reaproveitado, presentificado, tornado colagem e repetição, para virar a música popular dominante no ocidente há duas décadas. Seu legado cultural, político e sua energia insubmissa encontram em Nada sua fábula exemplar. Testemunha a transição, experimentando as tons desse vivo “não”.


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