Quando era criança ouvi estas aspas do título com certa frequência, vindo de pessoas negras mais velhas, especialmente homens. Lembrei disso assistindo alguns filmes do cineasta estadunidense Marlon Riggs, no cinema do Instituto Moreira Salles, aqui no Rio. Agora em junho de 2022, todos os filmes de Riggs serão exibidos nos cinema no IMS.
É constante nos filmes de Riggs que consegui ver até agora uma crítica interna à comunidade negra, em especial sobre homofobia. Os filmes foram feitos entre o final dos anos 80 e o começo dos anos 90 – época na minha infância também. Se por um lado os filmes parecem ter a função de dizer “nós existimos”, em relação às pessoas negras desobedientes de gênero, esta “crítica interna” parece ser uma constante no trabalho de Riggs.
Nessa mesma época, emerge com muita força nas universidades e os chamados Estudos Culturais. E com eles, um paradigma do pensamento da representação se reimpõe com muita força. O artigo clássico de bell hooks, “O Olhar Opositivo” é desta mesma época. É um texto calcado na ideia de representação e que toma o cinema industrial dos EUA como parâmetro de discussão – inclusive isso passa despercebido em muitas citações deste artigo em trabalhos aqui no Brasil, fazendo o paralelo de contextos sem levar isso em conta.
Cornelius Moore, parceira direto de Riggs e distribuidor de sua obra via California Newsreel diz com serenidade que Línguas Desatadas (Tongues United, 1989) é um “filme experimental”. Olhando o filme, isso é nítido. Uma série de estratégias que já figuram no cinema experimental desde pelos menos os anos 60 reaparecem ali na trama de Riggs, misturadas à performatividade de gênero, aparecem aqui: voz e sons não sincrônicos, repetições seriais, variação constante de registros de encenação, mudanças pictóricas durante o filme, o diretor dentro da cena, enfim, são muitas interseções.
Deliberadamente, Riggs não para o trabalho em dizer “bixas pretas existem”. É crucial que ele faça isso de maneira experimental, usando esse legado do cinema não industrial, do cinema marginalizado de seu país. E junte tradições que às vezes são pensadas de forma antagônica. Para o pensamento da representação no cinema, de forma geral, o experimental seria um engodo, algo menos “urgente” do que o que “precisamos mostrar”. Riggs desfaz esse mal entendido e vai ainda mais fundo: toda a cultura de rua, de fala das ruas, gírias, cantos, spoken word, a dança vogue, e todo tipo de mesmerização negra, são gestos experimentais. Pois não tem uso pragmático. Mesmo que depois possam se tornar mercadorias, não nasceram como tal.
As v´árias línguas da obra prima de Riggs são sua forma de fugir da ideia de representação como fim – que a ideia de capitalismo negro, de “pretos no topo”, quer hoje reforçar. Estes filmes experimentais, feitos para TV (é muito importante estar no “lugar errado”) são um deleite e um lembrete, quando a tentação da mercadoria e do close para venda são ameaças muito maiores do que foram em 1989.
Muita gente negra certamente torceu o nariz para esses filmes na época deles. Se hoje ainda produzem incômodo, imagina na sua época. Filme experimental? Cheio de repetições, gírias? Cadê o storytelling? Cadê o character driven? “Isso vai confundir ao invés de informar”, provavelmente disseram.
E me pergunto, se hoje, filmes como esse fossem feitos, desafiando os status quo atual, nós reconheceríamos? Estamos valorizando hoje a arte negra experimental, desafiadora, incômoda, do nosso tempo? Ou vamos ter que esperar que cada artista negro desobediente morra, para ser reconhecido com justiça?
Torço pra que esta especialíssima reunião de trabalhos na mostra Bixaria Negra no IMS possa fertilizar os chãos que irão desfazer os enganos que promovem uma arte negra conformada, certinha, pronta pra ser entendida, mastigável e confortável.
Programação e informações aqui.