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Texto de apresentação dos discos Ó Nóis e Aquele Nenhum, de Romulo Fróes (2021)

Me aproximei do Romulo há uns 10 anos atrás, indo a shows, como admirador da obra mesmo. De lá pra cá ele me fez convites pra apresentar os seus discos Barulho Feio e Por Elas Sem Elas – o que muito me honra. Sou muito formado pelos discos da música brasileira, como um todo: os textos de contracapa, as discussões críticas. De certa forma, poder escrever junto a um disco é devolver um pouco de tudo que recebi e recebo dos discos.

Pra comemorar seus 50 anos de vida, Romulo lançou dois discos, com repertório comum e tratamentos diferentes. Foi um barato escrever. Essa interlocução com ele é a garantia de que ideias não vão faltar aos trabalhos.

Pra esse texto fiz umas coisas inspiradas nos procedimentos que ele faz. O título é uma alusão a uma trilogia do pensador americano Fred Moten, chamada (consent not to be a single being). Boa parte da reflexão sobre propriedade e individualização que o texto traz, bebe daí. Mas o que fiz um pouco como o que o Ó Nóis faz foi inserir frases escondidas de outros no meio do texto. Tem umas três frases de textos de Torquato Neto publicados em normal “infiltradas” no meu.

Enfim, visitem a página do Rômulo, conheçam o trampo dele. Eu tenho uma admiração funda pelo que ele faz, me emociona e faz o pensamento andar.

Aqui estão os discos.

E aqui o texto:


Release_ Aquele Nenhum / Ó Nóis – Romulo Fróes

(YB, 2021)

O compromisso em não ser um só

O trabalho de Romulo Fróes tem como traço principal um desassossego obstinado. A partir de uma certa geografia de matrizes (o samba, a canção popular, o pop-rock), cada lançamento produz uma nova perspectiva diante deste território dinâmico. Aqui, esse estado de inquietação já nos traz uma questão de cara: este novo trabalho é um? São dois? O que seriam “discos irmãos”? Ó Nóis e Aquele Nenhum compartilham um repertório comum, porém com sonoridades radicalmente distintas. São duas possibilidades sobre um repertório compartilhado, uma espécie de recusa em ser um só, uma afirmação de uma abundância, de uma infinitude que habita virtualmente toda canção.

Desde os seus primeiros discos, o trabalho de Romulo é o de mergulhar dentro das estruturas e esticá-las ao máximo até encontrar outra coisa. Aqui a jornada tem algo de didático em relação ao propósito de demonstrar a extensão do que se pode fazer com um conjunto de canções a partir de tratamentos tão diferentes. A voz e o violão em Aquele Nenhum, as colagens e os fragmentos em Ó Nóis. Algo que chamei de uma “dramaturgia dos contrários” observada nas letras de Alice Coutinho, Clima e Nuno Ramos, na apresentação de seu disco Por Elas Sem Elas (2016),ganha nestes dois discos um exemplo bastante concreto. Neste tipo de combinação, seja ela sonora, semântica ou conceitual, o que importa é insistir nos pares paradoxais, nas contas que não fecham, em acirrar as contradições afinal. Não ser um.

A epígrafe sonora de Jards Macalé em Ó Nóis, remete a um encontro de Fróes com seu mestre, quando Romulo, muito antes de conhecê-lo pessoalmente, lhe ofereceu uma cópia de seu disco Cão (2006), recém lançado à época, junto a expressão de sua reverência, ao que Macalé respondeu com um “vai dar errado”. Porém, em se tratando de Jards Macalé, o sentido das coisas é sempre trocado, oblíquo, irônico, paródico e enigmático. O que significa afinal “dar errado”?

“Vai dar errado” não é uma negativa. É, antes de qualquer coisa, uma forma de “dar”. Dar é errado, diante da propriedade, do próprio, dos donos. Segundo a ordem estabelecida, o certo seria vender, como uma “publi” bem certinha. O trabalho de Romulo é um mergulho em direção à “impropriedade”: o samba torto dos primeiros discos Calado (2004) e Cão (2006), sua anti-homenagem a Nelson Cavaquinho com Rei Vadio (2016), a desmedida das sessões de seu álbum duplo No Chão Sem o Chão (2009), o pop alegremente obscuro de Um Labirinto em Cada Pé (2011), a sinfonia dissonante de Barulho Feio (2014).

Escrevi em outro texto: “Cornel West becketteou no jornal: Try again, fail again, fail better. Tenta de novo, feio de novo, feio better”. Enfim, a maneira com que a obra de Fróes caminha e se desenvolve é sempre a do “caminho errado”, uma confiança cega em dar a volta por fora, em direção ao abismo do inesperado. Seguindo com rigor a lição de seus mestres. Pois todo monumento da nossa música é um monumento ao errado, ao que não deu certo, à vitalidade do fracasso, ao vigor da afirmação da tristeza, um ensaio pra que ela possa não devorar nossa capacidade de agir. Nada produz mais valor do que o Brasil errado, aquele que não cabe, que é barrado na porta, que é barraco na encosta – é bem nessa beira que se produz o anti-acorde que é nascente de um país: feio better. Ó Nóis, como que enfia um microfone pela fenda dessa fonte, subterrâneo adentro, e colhe a cena originária do trisavô bruto do samba-canção que, não por acaso, é o neto mais jovem das colagens eletrônicas. O tempo não é um, o diabo não é um, o disco não é um, Romulo não é nenhum destes. O fim no começo, como sempre.

A face histórica sempre presente no trabalho de Romulo Fróes ganha aqui um capítulo marcante. A investigação em torno da história da canção brasileira em seu repertório sempre teve um lugar destacado, onde sua face mais evidente era a citação via letras. Baby infeliz (Jards Macalé / Guilherme Held / Romulo Fróes / Nuno Ramos), canção “intrusa” de Ó Nóis, coloca lá uma série de signos retirados de outras canções (“Vapor Barato”, “Negra Melodia”). Neste disco, o procedimento de apropriação ganha outro estatuto e se torna o processo principal de composição da faixa única que compõe Ó Nóis. Formado em boa parte por recortes de outras canções de Romulo de seus discos anteriores, o procedimento de incorporação de materiais alheios é de tal modo radical e performático aqui, que em alguns casos a ideia de unidade é expansivamente implodida. O próprio conjunto de canções desta dupla dinâmica de discos é composto, segundo Romulo, por músicas super recentes e também por outras que já repousam em seus arquivos há uns bons anos, assim como melodias antigas que ganharam letra muito recentemente para figurar neste lançamento. Há também uma história de si, subterrânea, nos discos. Tais novas antigas canções tomam emprestado de outras anteriores, seus sons, seus violões, seus climas, aqui tornados repetições, saturações e interferências. No nível do som e do conceito, Ó Nóis é um palimpsesto e uma meditação sobre a própria discografia de Romulo, radicalizando procedimentos que sempre estiveram presentes em seu trabalho. Enquanto que a limpidez de Aquele Nenhum disfarça a fragmentação que lhe pariu.

O trabalho de urdidura das passagens tem dois pontos de expressão aguda em Ó Nóis. O diálogo caseiro entre Romulo e seu pai, onde o filho pede que o pai cante. O canto que seu pai recusa, o canto da casa, “nem lavando a louça, nem no banheiro”, se realiza sem se realizar, duplicado, com Romulo entoando Aos Pés da Cruz (Marino Pinto / Zé da Zilda), sua voz reverberando como se dentro de uma igreja vazia para em seguida se emendar com a ambiência rude e sintética de Elza Aqui (Romulo Fróes / Nuno Ramos). Aqui está o trabalho: na passagem entre as seções, no intervalo entre as intensidades, na perseguição das transformações, compor uma espécie de filme cuja força principal é a manutenção de suas ideias tensionada pela amplitude das mudanças que opera. Entretanto, as metamorfoses não se dão somente por contrastes, mas justamente pela sensibilidade de buscar afinidades entre os elementos.A aparente atitude iconoclastaé um disfarce para um jogo de costuras e afinidades. Se queres saber (Peterpan), cantada por Jards Macalé, nasce de uma reminiscência radiofônica como que filtrada por David Lynch, que acaba sendo um elo fluido entre o diálogo de rua e a execução intimista, doméstica, de Macalé. De certa forma, se trata de encontrar os pontos de passagens entre uma coisa e outra, de pavimentar os vínculos, de radicalizar o trabalho de anti-solidão, fazendo com que afinal nada soe só. Os dois discos, os demais discos anteriores, as canções do amor demais, tudo isso é a geografia de uma comunidade a qual este trabalho cartografa e tece histórias. É a busca da sonoridade impossível deste magma que guia o novo capítulo da obra de Fróes, onde, de novo, todo dia, ele faz tudo diferente, e tudo sempre igual.

A “faixa dupla” Aquele Nenhum (Romulo Fróes), sofre a “invasão” da gravação de Cadê (Marcelo Cabral / Clima), presente no álbum Barulho Feio e se torna afinal, quase um mash up das duas. É notável como em Ó Nóis, o já observado desassossego, torna-se o motor de metamorfoses permanentes que as canções performam. Me Olha e Manda (Romulo Fróes / Alice Coutinho) começa com um vigoroso piano que vai aos poucos se decompondo numa métrica serial e desgovernada, como uma desprogramação eletrônica, e que deságua em Baby infeliz, faixa que acabou não entrando no álbum Besta Fera, disco mais recente de Jards Macalé, do qual Romulo é um de seus produtores. Nesta última, um naipe de sopros com sonoridade de TV antiga se combina com uma microfonia que é também uma espécie de carro de boi eletrônico. Todas as canções são também outras, todo som é também outro: o “nóis” é primeira pessoa, plural e indeterminada.

Minha Música (Romulo Fróes / Nuno Ramos) acaba tendo um certo valor de manifesto, como uma “meta canção” que fala sobre seu próprio fazer-se sobre como “ela me vem”:

No chocalho, na sanfona

No cavaco, no assobio

Vem na risada das aves

Vem no batuque dos bois

Na turbina, no motor

No boteco, minha sombra

Em cada acorde da dor

Em cada minúcia da dor

O elenco díspar de elementos elucida o tipo de perspectiva aqui adotada. A canção vem sempre do disforme das ruas, do barulho das coisas, do gralhar dos animais, dos motores e da zuêra dos botecos. De nada disso, ninguém é dono ou proprietário. A duplicidade deste trabalho de Romulo evidencia o quanto Aquele Nenhum está em Ó Nóis e também o inverso. No disco “nu”, estão lá, em cada silêncio ou acorde, todo ruído do mundo, todo sussurro da rua, todo grito vadio, todo zum zum zum. Nenhuma canção é pura, nem nunca foi. Talvez essa seja a questão base do trabalho de Romulo: como se manter fielmente impuro em relação à geografia que falamos acima? A floresta sonora de Ó Nóis explicita o germe que já está em Aquele Nenhum. Não existe floresta pura. O batuque dos bois, o barulho feio, é o meio, é inerente, é o nascedouro inescapável, “negra melodia geral”, abundantemente morte. A limpidez de Aquele Nenhum é um truque ótico de Romulo. Experimente ouvir os dois discos e logo após voltar ao primeiro. O que acontecerá é um jogo abismático de não-saber: como era no outro mesmo? Essa é aquela canção? Não exatamente um jogo dos sete erros, mas um exercício de ativar esse germe, essa face virtual latente, onde é impossível dizer qual é a versão certa: vai dar errado.

É justo destacar hoje, a importância política deste compromisso em não ser um só, essa recusa a individuar, quando tudo ao redor de nós parece funcionar na métrica da individualização. Porém, o trabalho que costumamos chamar “de Romulo Fróes”, sempre foi da sua rede de colaborações, esse nome é o nome de algo que se faz e que se fez junto, nesse espaço “entre”, que resultou em extrema coerência desobediente.  Porém aqui, não é só violão junto à voz, melodista mais letrista, mas canção mais canção, ruído mais fragmento, isto é: a unidade sofre afinal um golpe fatal. O disco será enfim o espaço dinâmico entre Aquele Nenhum e Ó Nóis, a memória que se faz de um quando se ouve o outro, o corte entre estes dois planos, o intervalo entre os fonogramas.

Como o próprio trabalho gráfico de Thiago Lacaz atesta, a identidade aqui apaga o nome, ela é agente de opacidade. Ao mesmo tempo, a dupla de discos é um tratado sobre toda obra de Romulo e simultaneamente um enorme salto, incorporando procedimentos nunca antes experimentados por ele. O inusitado single de Elza Aqui, lançado em 2019, não parecia ser o prenúncio de uma nova etapa de sua obra. A austeridade eletrônica e sintética era um caminho inimaginável para a obra de Fróes em seus momentos anteriores, porém, mais uma vez, ele nos surpreende fazendo sempre a mesma coisa: escolher o caminho difícil, escolher “dar errado” afinal, buscar o que não foi feito, aprofundando o incompleto, aqui com duas vivas “metades inteiras”.

Juliano Gomes, junho de 2021


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