Uma educação pela pedra: por lições;
Para aprender da pedra, frequentá-la;
Captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
Ao que flui e a fluir, a ser maleada;
A de poética, sua carnadura concreta;
A de economia, seu adensar-se compacta:
Lições da pedra (de fora para dentro,
Cartilha muda), para quem soletrá-la.
Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
E se lecionasse, não ensinaria nada;
Lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
Uma pedra de nascença, entranha a alma.
(João Cabral de Melo Neto, A educação pela pedra)
Neste ano, contam-se cinquenta anos do “acontecimento” O padre e a moça. Nos quatro meses em que a equipe se isolou na remota São Gonçalo do Rio das Pedras, em Minas Gerais, no primeiro longa de ficção de Joaquim Pedro, na primeira montagem de Eduardo Escorel, em uma situação absolutamente peculiar, se deu este filme que habita um espectro dentro da história do cinema brasileiro que pouquíssimos outros filmes ocupam. Só comparável talvez ao Porto das Caixas, de Paulo César Saraceni, O Padre e a moça é um dos raros longas de estreia que inventam um idioma próprio, que criam consigo suas próprias regras, formando uma corrente subterrânea. É um núcleo intimista do Cinema Novo, que se liga com uma tradição trágica, uma metafísica das sensações, em cujo traçado podemos incluir Oswaldo Goeldi, Clarice Lispector, Cornélio Pena, Lúcio Cardoso e Raduan Nassar, para citar alguns. E uma parte-chave desse acontecimento-filme é a escalação de um ator sem experiência em cinema para fazer o papel-título, substituindo Luiz Jasmin, que adoece às vésperas da filmagem. Este ator é Paulo José.
Sem conhecer o roteiro, Paulo chega alguns dias depois da equipe à pacata cidade mineira e conta que Joaquim Pedro o olha, o examina, dá voltas em torno de si, deixando-o inseguro. E assim começa um dos trabalhos que, como o próprio filme, é uma das maiores conquistas da história dos nossos atores nas telas até hoje. O Padre de Paulo José, nesse primeiro passo no cinema, dado com maestria e precisão de um veterano, coloca em jogo uma espécie de novo paradigma para o ator no Brasil. Não por acaso, trata-se de um filme que sofreu grande incompreensão de parte da crítica à sua época; e o próprio Joaquim Pedro só percebeu o alcance do seu êxito quase duas décadas depois, numa retrospectiva de sua obra em Roterdã, no final dos anos 70.
O que faz de O padre e a moça uma obra-prima é justamente o perfeito ajuste das partes envolvidas. A fotografia gravural e detalhista de Mário Carneiro, a montagem discretamente opressiva de Eduardo Escorel, o lirismo cortante dos temas de Carlos Lyra, o ritmo lentamente obsessivo impresso por Joaquim Pedro e o trabalho do quarteto Paulo José, Helena Ignez, Fauzi Arap e Mário Lago formam um mundo marcado radicalmente por uma mistura de uma discreta exuberância aliada a uma permanente força de contenção. Trata-se de um filme em negativa, que se concentra em não acontecimentos, filme que se funda na impossibilidade do amor, do erótico, e transforma essa pedra de fundação em sua força e seu motor conceitual. Diante do impasse erótico latente, como disse Rogério Sganzerla num de seus melhores textos, “quem sofre é o filme, é a forma do filme” [1].
Dentro dessa poética do negativo, desse meticuloso esculpir de sombras que é O padre e a moça, Paulo José transforma o conceito do filme em seu corpo. Pela primeira vez com tal radicalidade, um ator de cinema brasileiro se torna pura opacidade. Paulo aprende com Joaquim que o “ator é significante e não significado” e, daí, parte em busca de uma intensidade que advenha de uma aparente neutralidade. Tendo o trabalho de Robert Bresson e seus modelos como referência composicional, Joaquim Pedro e Paulo José criam este padre que é mais impressão, obstrução, do que expressão. O que espanta é o quanto o filme, em variados níveis, consegue construir um “dentro”, uma sensação nítida de um interior de que só podemos sentir sutis sismos e reverberações. À superfície chegam signos indecifráveis, que se fazem presentes somente na medida mínima de um índice desse magma interno.
Um dos expedientes que dão forma a esse conjunto de sensações transmitidas pela relação do corpo com a imagem é a maneira como o corpo é figurado quase sempre em seu valor de conjunto. Os momentos em close são muitíssimo pontuais, quase que somente quando o erotismo atinge seu ponto máximo, como na fuga do casal-título, no terço final do filme. Paulo imprime a lentidão atormentada, a aparentada neutralidade, que é a solução para a expressão de represamento afetivo que é o motor do filme. O papel do ator, que o trabalho de estreia de Paulo José já consolida de maneira definitiva, é manejar o enigma, é tornar a opacidade, o não significado, uma força dinâmica. Uma das operações centrais desse processo é descentralizar o rosto como fábrica predominante de signos. Em O padre e a moça, é notável a força premonitória com que um dos elementos mais significativos das últimas décadas ganha protagonismo: a nuca do ator, de costas para a câmera. Como metáfora da opacidade, o Padre filmado por trás é a ação dessa força misteriosa e dinâmica, que mais acompanhamos do que decodificamos. Característica central de boa parte da melhor ficção cinematográfica brasileira deste século, o manejo da opacidade, na interpretação, tem aqui sua pedra fundamental. Paulo José é uma massa negra, uma silhueta, tornado todo bata. Assim como na fotografia de Mário Carneiro, as zonas de preto, de grau zero de informação, são transformadas em agentes ativos esteticamente. Todo o trabalho desse cosmos sufocante a céu aberto chamado O padre e a moça pode ser resumido no desafio de como estetizar a negação, o negativo, o não, como lhe dar forma.
O Padre é aquele que chega depois a essa cidade condenada, após o ciclo dos diamantes, uma terra de onde já se extraiu tudo. A condição desse universo parece ser o “depois da vida”, o “tarde demais” com que Gilles Deleuze caracteriza a obra de Luchino Visconti [2] – cujo gosto pelo trágico e pela lenta obsessão descritiva muito se aproxima do filme brasileiro. Como expressar essa ausência? Como dar forma a essa presença cuja substância é a morte e o definhamento em suas mais variadas formas? A moça Mariana, vivida por Helena Ignez, é possibilidade de sensualidade que desestabiliza essa indelével atmosfera do trágico, e é ela que está em disputa. Nessa empreitada num universo de composição a partir de um paradigma de inexpressão, a força do trabalho dos atores, e principalmente de Paulo José, é a compreensão do próprio corpo como material, como matéria, como volume físico, em detrimento de uma densidade psíquica ou expressiva. O ator como bloco de cinza, tornado negro amor ou renda branca, de acordo com sua relação com os outros blocos de luz e tempo orquestrados por Joaquim Pedro (não por acaso, formado em física), Carneiro e sua equipe.
Não à toa, a ação converge para uma caverna. Esse drama esculpido é tragédia mineira e mineral. Uma exploração das velocidades de frequência mineral, que são os elementos por excelência cujo desenvolvimento a percepção humana não tem as ferramentas para acompanhar em ato; ela pode apenas ver seus resultados depois. Não vemos o nascer de um diamante, mas vivemos a intensidade de sua presença. Nesse mundo onde Deus parece ausente, e a morte regente, o que confere sentido ao tempo é a presença das coisas do mundo, e, entre elas, o homem. Tal metafísica inversa pede um outro tipo de trabalho, também para o ator, que é a especialidade das pedras: a combinação, em igual intensidade, de uma expressão densa de alheamento e presença. Ser vazio e cheio como uma pedra, presente e indiferente, mas em relação. Uma porta fechada não é um fim de caminho, mas um objeto que sugere formas, pau, pedra, sensações e experiências específicas. A “voz inenfática, impessoal” descrita pelo poema de João Cabral de Melo Neto, que mais parece uma cartilha dessa estética que atinge em O padre e a moça uma de suas mais violentas consubstanciações, é um dos meios dessa densa melancolia que implode a cada bloco de sombra e branco, a cada respirar e fechar de pálpebras. E entre essa imponente orquestração em torno da irrealização, o corpo e os tempos do Padre vivido por Paulo José são essa antimáquina perfeita que exala distância e intimidade, construindo um modelo raro de composição que segue o modelo da escultura, em que a subtração é o meio que leva ao auge de sua força singular e imprópria.
Juliano Gomes ⎼ crítico de cinema
[1] São Paulo, março/ abril, 1966.
[2] No livro A imagem-tempo, da Editora Brasilense.