Texto escrito para o catálogo da mostra “Jia Zhang Ke – A cidade em quadro”, realizada na Caixa Cultural Rio, Pela produtora Fagulha, em 2014. Mais informações aqui: http://www.fagulhafilmes.com.br/mostrajia/
Uma arqueologia do tempo Sobre “O Mundo” (Shijie, 2004)
Juliano Gomes
O trabalho de Jia ZhangKe em seu quarto longa, precisamente batizado de O Mundo, é acima de tudo o trabalho de um historiador. Através do manejo dos tempos nas imagens e das imagens nos tempos, assisti-lo nos dá a ver, em ato, uma ideia de história dinâmica, em formação. Não se trata de elencar uma série de fatos ou tecer um linha reta entre o passado e o agora. Não. É o confronto dessa concepção de história com uma outra, uma história que só existe em movimento, em duração, indivisível. Um exemplo pode ajudar aqui: vemos um moderno trem, em um monotrilho suspenso levando a personagem principal Tao (Zhao Tao), com a cidade de Pequim ao fundo. A câmera faz um movimento panorâmico para baixo e para esquerda, e enquadra uma série de homens fardados carregando galões de água, abaixo dos trilhos suspensos e, num movimento contínuo, enquadra em segundo plano uma miniatura das pirâmides do Egito. Ao contrário do que possa parecer, não se trata de elucidar uma heterogeneidade inerente ao contemporâneo (pós-modernismo e afins), mas sim de estabelecer um mecanismo que atravessa todo o filme. Uma estranha continuidade entre elementos de tempos diferentes, cuja junção, ao colocá-los em relação, nos revelará ligações que o simples mostrar, isoladamente, não revelaria. Há um trem moderno, industrial e pós-industrial, vazio, levando alguém sozinho. Abaixo dele, trabalhadores braçais carregam material pesado, de uma maneira bastante rudimentar como técnica de trabalho, e aí vemos as pirâmides como elemento de perspectiva para toda a cena. Um meio de transporte sofisticado, porém subutilizado, sem causar bem comum, trabalhadores em aparente exploração, trabalhando de maneira precária, à frente de um símbolo que designa ao mesmo tempo beleza ostentatória e morte. Em que esses homens fardados se diferenciam dos homens que construíram as pirâmides há séculos?
O cenário do parque em O Mundo será o cosmos onde Jia tecerá com rara maestria uma poética da história fazendo-se como ato, como manejo do tempo, no cinema. Uma aproximação funciona como premissa de entrada no filme. O cinema é irmão dos parques urbanos. Considerando como seu nascimento o cinematógrafo Lumière, não estamos longe das Exposições Universais de Paris, da mesma época, no fim do século XIX. O que havia lá? Novos meios de transporte: “a rua do futuro” (uma esteira rolante), a inauguração do metrô parisiense, eletricidade pela primeira vez para iluminar ambientes externos, palácios, os jogos olímpicos de 1900, uma grande miniatura do globo terrestre, enfim, uma celebração do progresso, das conquistas da civilização, cuja entrada é justamente um dos espaços mais utilizados no filme aqui em questão – a Torre Eiffel. A história se repete em seus procedimentos, funções, mas nem sempre nas suas matérias. É aí que age o cinema de Jia. Inverter as funções, reordenar as matérias, afirmando seus parentescos, mas ressaltando o caráter arbitrário, que encobre por exemplo, a ligação entre progresso e o Bem. O parque em Pequim é o parque em Paris. Mais de cem anos depois, o tempo passou. Claro que sim e claro que não. É isso que cada plano aqui afirma em sua busca: o tempo é impuro em sua aparente continuidade. A percepção é contínua, mas o tempo é o da multiplicidade, da impureza. Walter Benjamin dirá em suas Teses sobre o conceito de história: “a ideia de um progresso da humanidade na história é inseparável da ideia de sua marcha no interior de um tempo vazio e homogêneo. A crítica da ideia do progresso tem como pressuposto a crítica da ideia dessa marcha”. Jia é um historiador da heterogeneidade: do público e do privado, do arcaico e do contemporâneo, do espetáculo e da natureza, do ator e do personagem, do amor e do trabalho, do detalhe e da paisagem, do atual e do virtual. O que mais importa nesses pares é justamente o “e”. Seu valor como conjunção. É esse o campo de trabalho de Jia nas imagens: manejar as tensões entre conjunção (simultaneidade, ligação, união) e disjunção (separação, distinção, diferença).
Essa operação dupla, que junta e separa, também funciona na estrutura do filme. Apesar da rara precisão que a parceria entre Jia e o fotógrafo Yu Lik Wai atinge da realização de planos-sequência cuja leveza e precisão não têm par no cinema contemporâneo. A força de O Mundo é maneira como esses processos se espalham também pelos intertítulos, inserções e sequências em animação no fluxo do filme. Os intertítulos ao mesmo tempo em que marcam alguns segmentos do filme (têm relação direta com o que vemos) são alocados desigualmente pela duração do longa marcando, simultaneamente, uma separação e arbitrariedade. Paris in Beijing Suburb, Ulan Bator Night, Tokyo Story, Ever Changing World deslizam sobre a tela, em um misto de segmentação e evocação de uma multiplicidade. Sob o primeiro, vemos a miniatura da Torre em meio à cidade, no corte seguinte ao segundo ruínas, sob o terceiro, imagens de uma casa japonesa tradicional e mulheres de kimono e sob o quarto, um close de um passaporte. O escrito é mais um dado dessa coexistência paradoxal de sentidos, que afirma e desafirma, que marca e confunde, que abre e fecha. Da mesma maneira, se revelará o bilhete de despedida do Irmãzinha (Zhijun Chen). Ao final de um longo plano sem cortes, a câmera busca a parede como suporte para exibir a carta, que afinal é um lista de dívidas, de alguém que morreu por exaustão no trabalho. Corta para um plano geral da cidade.
As sequências em animação, que não raro, são tratadas pela crítica como marca de uma nova etapa na obra de Jia, são somente uma radicalização dessa experiência que seu cinema sempre desejou: a exploração radical das ligações de continuidade e descontinuidade. O mesmo espaço, o mesmo grupo de personagens, um mesmo espaço-tempo, planos amplos que tendem a se estender e articular dentro de si mais de um corpo e mais de uma ação, convivem com situações que não se concluem, sentimentos que não se explicitam, imagens de naturezas aparentemente distintas (telas, encenações teatrais, cópias, réplicas). As animações em flash digitais, em geral, estarão associadas à comunicação dos personagens, especialmente via telefone celular. É justamente o drama da ligação, do laço, da continuidade, da junção, que está em jogo e em crise. Eles juntam e separam as pessoas, elimina-se a distância física necessária para a fala, mas aumenta-se uma outra escala, pela frieza das palavras em dígitos. O mundo é o lugar da criação, convivência e fricção das imagens. A mudança para um registro não indicial coexiste com uma continuidade narrativa com a imagem anterior. Não se trata de uma ruptura, mas sim de uma continuidade de outra ordem, de uma montagem tão visível quanto invisível.
O cinema é afinal uma experiência cartográfica, em seu desejo de duplicar a experiência visível, mudando-a de tamanho e proporções. Essa é a premissa da existência do parque. Não por acaso, o mundo do teatro, da encenação e do artifício é central como tema (acompanhamos um grupo de dançarinos e um grupo de guardas, todos trabalhadores do parque) e como camada. A aparência cristalina dos planos se combina com uma inescapável força metalinguística que contamina o filme por diversas entradas. O início do filme, confunde-se com a abertura de um número apresentado no parque, palco, luzes, corte para plateia. O que vemos é uma representação. Um filme, uma peça, uma imagem, ao mesmo tempo. A exploração das entradas e saídas do espetáculo e de mecanismos variados de artifício (como na cena onde Tao conversa com seu namorado em primeiro plano, bebe água, segue em direção ao fundo do quadro, onde há um grupo de turistas, e começa a dançar sua coreografia com suas colegas). O espetáculo não tem limites fixos, e não é do domínio da falsidade. Ele existe e se espalha por tudo como forma. Qualquer história, é antes de tudo, uma história de si mesma, de sua própria composição de discursos. Mas seus elementos ecoam, vazam. A construção dos quadros em tableau, a escolha pela planificação do mundo em duas dimensões (assim como também as animações) cria um “achatamento” potente para essa convivência do mostrar como ato e do que se mostra dentro do campo. Nesse universo plano, é possível explorar as escalas, meridianos e paralelos. O conceito de “mundo” nada mais é que a ideia da perspectiva humana (não por acaso, os discursos de fim do mundo proliferam-se hoje, quando de fato, o que urge é uma mudança de perspectiva). É um conceito que designa lugares que podem variar (o planeta, o “meu” mundo, o universo, a civilização…), mas que fala, principalmente de uma perspectiva onde o ponto de referência é o homem e também de um lugar onde se habita, um espaço. Todo esforço de Jia é, justamente, fazer variar essa relação entre homem e espaço, mantendo a tensão ativa, sem nunca abandonar um em proveito do outro. A perspectiva é alterável. Há diferença e comunhão, em variação. A produção de um e do outro é mútua e múltipla, assim como a destruição. Pois uma imagem é sempre o testemunho de uma desaparição.
É também uma história do cinema que está em ato diante dos nossos olhos. O Eros doente, a precisão do quadro geométrico de Antonioni, a relação homem-mundo, primeiro plano-segundo plano constante de Rosselini (além da referência direta na cena final do casal morto, ao amor fossilizado na Pompéia em Viagem à Itália), a sutileza incisiva dos movimentos de câmera e da transfiguração histórica de Hou Hsiao Hsien, a referência direta à Ozu em um dos nomes dos intertítulos, no uso da música nesse trecho (trilha original de Era uma vez em Tóquio), entre muitas outras entradas possíveis. Enquadrar é sempre uma operação genealógica e arquitetural. Telas, janelas, palcos e passarelas, são a matéria desse que é um dos artistas mais decisivos deste século na constituição impura e implosiva do presente rizomático, que se liga e reencena várias alteridades de tempo, de imagem, de registro. Ao tomar para si com tenacidade, a antiga tarefa de testemunhar seu tempo, Jia consegue esculpir uma profusão de signos ao mesmo tempo límpida e múltipla dobrando o discurso da história que se dirige inexoravelmente para o progresso, e erigindo uma história dos vencidos que é discretamente saturada de “agoras”. Toda imagem é heterogênea, contínua, falha e contagiosa em O Mundo. “Aqui não tem o lugar onde meu marido mora na França”, diz a amante de Taisheng, em referência ao irrepresentado no Parque.
Há sempre alguma coisa de fora. Cada operação de escala deixa restos, cria um fora. A história da civilização é acima de tudo uma longa tragédia das desigualdades e dos vazamentos. “Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie”, dirá Walter Benjamin nas Teses. É essa avalanche dialética que esse cinema dá forma com tal precisão que se coloca no limite de traí-la. Sob tela preta, na última cena, após vermos os corpos do casal principal colocados no chão, ouvimos suas vozes:
- Estamos mortos?
- Não. Isso é só o começo.
Desaparecer é uma duração entre outras. Um intervalo é também um cruzamento entre séries diferentes. Afinal, nem mesmo o fim é uma imagem da qual não se possa desdobrar. A noite é também uma cor.