É a terceira vez em que vejo Púrpura. Sem dúvida, a melhor. É foda essas coisas das condições técnicas: nunca tinha ouvido os murmúrios. Na verdade, não sei bem se são murmúrios. De cara, acho que a linha mestra do filme é a das transições, limbos, esse movimento de um ponto ao outro, este estado de pulsação, ou crescente e minguante, da cor preta à cor branca e vice-versa. Daí, aquela voz, quase humana, quase da terra, quase de deus, quase canto, quase reza, quase iorubá, quase agonia, quase ruído, que costura a coisa, que costura os mortos, que completa a volta, me ofereceu uma outra dimensão do filme. O elogio da doença, da sua importância, era algo que já tinha me fisgado nas outras vezes, era a minha chave, e sua importância é cabal. Vivemos na histeria da erradicação do todo mal, de toda peste, de toda “violência”, de toda força de desintegração (lembro de uma visão de horror cotidiano que tive ontem, numa prateleira branco-hospital de um hipermercado, onde vi um suco de caixa cujo rótulo estampava o nome fantasia “Do bem”). Púrpura é cor (a maior cor da antiguidade, a cor que os reis queriam monopolizar. Matavam quem usasse. Extraída das profundezas, do mundo quase inacessível, dos moluscos, essas cavernas vivas) e é doença. Um filme, o filme, são experiências de contágio. E, estranhamente, o contágio vem de fora e de dentro. Adoecer é sempre um encontro de duas chagas, é uma espécie de sexo ao contrário, é uma cópula da Morte. O trabalho da morte, já dizia Serge Daney, é a tarefa de documentação do cinema. Cinema-Omulu. O filme é sobre essas variações, sobre paixão, no sentido patológico. Perda da individualidade (não sei se perda, pois não sei se já a tivemos), desintegração, dissolução. E aqui vejo o trajeto preciso dessas formas. Não sei se olho o homem ou a paisagem. Até que atinjo o ponto da indiferenciação, o ponto móvel onde o sujeito é o capim, a lama, e o homem é o fundo. Daí a importância da pintura mesmo no filme, de sua dimensão de tela, de bidimensionalidade, é preciso criar um sistema intercambiável e móvel entre o homem e a paisagem para operar as fusões (e transfusões): capim que vira ruga que vira fenda na terra que vira ferida que vira reflexo e assim por diante retornando eternamente. Longe de relativismo absoluto de “tudo é tudo”, mas afirmando e articulando os elementos das transformações: a cena está ali, não é um espetáculo metafísico, é uma investigação do imergir e do emergir da morte na superfície das coisas. O mundo acabou faz tempo. Pra construir outro, não dá pra tentar enfiar as trevas embaixo do tapete. Cada pereba é um nascimento, é uma força de vida querendo tomar conta, é um pouco como as paredes abandonadas ou os solos ressecados: será que a tinta que secou, o reboco que caiu, ou é a força interna primitiva das coisas, esse fundo lodoso obscuro e original que precisa emergir? Ele sempre triunfa. A humanidade é uma invenção para tentar fazer esta força falar menos alto. Púrpura narra uma travessia dessa paixão, propaga pelo ar (o vento é a respiração do mundo, seu suspiro), faz do olho do cavalo a paisagem, porque se é das superfícies, das telas, do visível que falamos, está tudo ali, elas falam por si. Cinema é corte, gravura, fenda, ferida. É violação, viola.